Ainda bem

Sofia
3 min readFeb 15, 2021

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Solipsismo é a ideia filosófica de que nada mais existe no mundo, exceto você mesma e suas experiências. Todo o resto, incluindo as pessoas, é uma ficção de sua mente.

Um dia eu conheci a Solidão. Ficamos juntas por algum tempo, mas logo ela enjoou de mim. Eu era ainda criança, tinha outras amigas, como a Alegria. Quando a Solidão se foi, disse que voltaria mais tarde, e que seríamos amigas para sempre.

No dia que nos conhecemos eu estava sentada na calçada da rua de uma cidade bem pequenininha, esperando uma promessa velha se cumprir. Eu dizia que tinha esperança, daquela vez daria certo. Alguns primos esperaram comigo por um tempão, depois desistiram. Foi uma coincidência eu ter ficado sozinha. Lá, um metro e dez de criança suja de barro, sentada no meio-fio olhando o horizonte, eu senti ela se aproximar.

Me perguntou o que eu estava fazendo. Disse que tinha esperança, mas que ninguém acreditava em mim, nem os mais velhos, que sabem de tudo. As outras crianças foram fazer outra coisa, e as pessoas na rua já achavam estranho eu estar plantada há horas no mesmo lugar. Criança desiludida.

Anoiteceu e tive de entrar na casa. Contei para uma ou outra pessoa grande o que tinha acontecido.

“Me prometeram levar num lugar, sempre prometem, mas acho que eles se esqueceram de mim. Fiquei esperando o dia todo. Eles não chegaram.”

Tive pela primeira vez a sensação de que ninguém, além de mim, conseguiria compreender a situação. Não tinha pra quem contar, não tinha o que fazer. Minha realidade não fazia sentido com a de mais ninguém ali.

O tempo passou, como de costume, e aquele dia acabou. Ainda bem. Mas não tardou muito e lá estava ela de novo, me espreitando. Para quem eu poderia falar de um mundo que só existia na minha cabeça?

“Trabalho em grupo”. Três palavrinhas detestáveis. Logo após serem pronunciadas, via um show em câmera lenta: a sala cheia de crianças eufóricas se dividindo em pequenos nichos. Como o mar Vermelho que se divide em dois, eu era tipo Moisés, me encontrava sempre no meio. Enquanto os grupos se formavam eu analisava as finitas possibilidades do que aconteceria a seguir. Devo pedir para fazer parte de algum deles? Sair correndo abruptamente da sala de aula? Posso desaparecer? Ou quem sabe pedir para fazer sozinha? E se eu for ao banheiro e nunca mais voltar?

O tempo acabou e eu ainda não decidi. Os olhos estavam cheios de lágrimas, mas nenhuma delas teve a ousadia de cair. No entanto, a situação era tão óbvia que beirava o patético. Eu estava a ponto de cair em prantos no centro daquela maldita sala, até que o olhar da professora me afastou do precipício. Ela disse que faria comigo, seríamos um trio: eu, a professora e a Solidão.

O tempo passou, como de costume, e aquele dia acabou. Ainda bem. Agora eu já era criança crescida, tinha achado alguns meios de viver na realidade desconexa que cultivei. Contudo, às vezes alguém estalava os dedos e despertava em mim a dolorosa lembrança de que eu estava compartilhando o mundo com outros.

Esses outros (e apenas eles) que rejeitam outros, outros que rejeitam a si mesmos, outros dos quais as vozes ecoam “cacofoniamente” na minha mente. De vez em quando esses sons soam mais altos, noutras vezes desaparecem quase que por completo, mas estão sempre lá.

Eu não entendia como é possível estar presente e ausente ao mesmo tempo. Só mais tarde criei empatia por esses tipos de contradições. Ninguém me via, mas sabiam que eu estava lá. Era como se eu tivesse uma capa de invisibilidade que qualquer um poderia roubar de mim.

Nada me pertencia, nem mesmo o meu não-pertencimento.

Desenho em preto e branco de uma moça de cabelos cacheados abraçando as pernas e olhando para baixo.
Rabisco por mim.

A verdade é que tenho muito medo de quando a noite chega. Medo da hora de encostar minha cabeça num travesseiro e ter de fechar os olhos até sumir. Medo do silêncio que evidencia a orquestra sem maestro dentro de mim. Medo das pessoas que vão sumindo, gradualmente, e que por mais que eu não consiga alcançá-las ainda em vida, me confortaria saber que estão ali.

Na solidão solipsista, não existe essa coisa dos outros não te entenderem. Você é o outro. Você não se entende. Mas o tempo agora não passa, fora de costume, e o dia não acabou. Ainda bem.

Escrito em algum dia de janeiro que ainda não acabou.

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