A CÓPIA DA PERCEPÇÃO MAIS VIVA DE VOCÊ

Sofia
3 min readJul 1, 2020

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spaceships, stars, nature, black and white
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Revisitei uma conversa antiga com uma das pessoas mais peculiares e inteligentes que tive o acaso de conhecer. É aquela pessoa que, olhando de longe, se nota a anormalidade, mesmo sem ter um estilo espalhafatoso. É sobre seu jeito absorto de andar, como se tivesse acabado de dar os primeiros passos, com medo de cair ou esbarrar em algo. É sobre sua expressão facial ainda desajeitada, que não sabe ao certo como sorrir sem assustar os outros. É sobre seu jeito curioso de perceber o que há à sua volta, como se fosse a primeira vez vendo o mundo. É sobre seu jeito esquisito de cumprimentar os outros, como se tivesse acabado de aprender a falar. Conheci algumas poucas pessoas assim, e penso nelas todos os dias. Hoje é sobre ele, que também já escreveu (mal) sobre mim.

“Eu adoro te ler, continue falando” — nunca entendi o que ele quis dizer com isso, de verdade. Seria uma satisfação pessoal sobre minha mediocridade, minha arrogância… o que?

É uma dessas pessoas que, por mais situadas que estejam, estão sempre perdidas. Talvez incertas do que realmente amam, porque, é claro, nossos amores mudam drasticamente ao longo do tempo, mas elas amam tudo tão intensamente, tudo é tão vívido e fascinante, tudo é digno de sua atenção e fiel devoção… eu entendo que deva ser muito penoso escolher.

A chance de eu ter te idealizado é altíssima, mas lembro vividamente do nosso abraço de despedida. Um sentimento estranho de que algo estava incompleto, de insaciabilidade, e também de vergonha, própria e alheia. Olhares desconhecidos e repressores. Cada milissegundo daquele abraço foi singularmente desconfortável e, ao mesmo tempo, eu queria mais, queria poder abraçar de verdade, e chorar no seu peito. Não soube quando e como terminar o abraço, e nem me lembro como foi, para mim não teve fim. Para mim, nosso abraço ainda perdura num tempo sem espaço. Mas todos estavam olhando, não podia me render, eu não havia assumido sentimentos nem para eu mesma, oras! Além do mais, pessoa tão alienígena como você, que vínculo eu poderia ter? Mas é evidente que tinha.

Você foi minha dupla, meu grupo. Meu fiel amigo, meu traidor. Meu riso, meu choro. Minha dúvida, minha certeza. Mas nunca foi meu amante, nem por um instante sequer.

A impressão que eu tenho é de que fui seu palco, sua plateia. Eu costumo ser isso para muitas pessoas. Eu sou um palco contemplando o show que elas são, aplaudindo e absorvendo. Não lembro de nenhuma resposta minha, mas lembro de suas falas. As viagens espaciais euclidianas. A dificuldade em elaborar uma pergunta que nem para você fazia sentido. O riso contido em situações incertas. Os elogios recatados. O olhar que praticamente me dizia, gritando, “preste atenção em mim!”.

Eu prestei, prestava, e ainda presto.

Ainda assim, o leitor mais assíduo sempre foi você, que sabia o que estava acontecendo na minha vida melhor até que eu. É verdade, por mais egoísta que eu fosse, eu não me amava, eu não sabia me amar, eu não entendia o porquê de ter que ficar só. E só compreendi isso depois de transfinitas noites de choro. Você me amou sem ser amado, me contou essa vergonha e me apagou de sua memória.

Você é uma dessas pessoas sem vergonhas! Como eu queria ser assim, você nem imagina. Dessas pessoas que nenhuma conversa é trivial, sempre há riso, prazer ou incômodo, mas nunca apatia. Agora só me restam memórias suas. Quero finalizar com um trecho da obra Ensaio Sobre o Entendimento Humano[*]

Todas as cores da poesia, apesar de esplêndidas, nunca podem pintar os objetos naturais de tal modo que se torne a descrição pela paisagem real. O pensamento mais vivo é sempre inferior à sensação mais embaçada.

Desculpe, mas prefiro a saudade do que a sensação mais embaçada de você.

[*] Não pretendo exaltar David Hume ou quaisquer de suas opiniões. Mantive a citação porque é parte importante do que eu queria dizer quando escrevi.

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